A traição nos detalhes
O dia tinha sido agitado no trabalho. Estava arrastando o meu corpo cansado para casa, enquanto a minha cabeça fervia como uma CPU rodando mil programas. Tinham tantos pensamentos vindo simultaneamente que nem sabia se estava fazendo o caminho certo para casa – uma tarefa tão simples que até alguém completamente embriagado conseguiria fazer entre um tropeço e outro. Para minha surpresa, consegui chegar em casa. Abri o portão, dei boa noite para o seu Jacir e segui para o elevador. Logo na entrada do prédio, perto do jardim, vi um pai e sua filha de 5 anos brincando. Já havia encontrado com ele antes no elevador. E lá estavam os dois, se divertindo enquanto jogavam bola no playground naquela noite. Pelo menos era o que parecia.
Tive que passar por eles no caminho até o elevador. Quando me aproximei, percebi que o rapaz mal olhava para a filha. Eles não estavam jogando bola, ela estava. Ou só tentava. Mas não jogava bola, tentava chamar a atenção do seu pai arremessando ela nele. Mas ele não reagia, estava concentrado demais no celular. É como se o rosto dele estivesse sendo sugado pelo aparelho. Não conseguia olhar para sua filha, apenas para as mensagens que recebia. Claramente não queria brincar com ela, muito menos que ela se aproximasse. Toda vez que a garotinha trazia a bola, ele a arremessava longe o suficiente para aproveitar alguns instantes trocando mensagens em paz. Até ela chegar com a bola de volta. Se ele queria usar o celular e não brincar, por que desceram para jogar bola? Por que estava lá embaixo fazendo o que poderia fazer no seu apartamento?
Durante toda a brincadeira, o seu objetivo era mantê-la longe e ocupada, bem afastada do que estava fazendo. Devia estar conversando com uma amante. Era muito novo para ser pai; muito novo para se comprometer com a vida de casado. O que explicaria estar ali, longe do apartamento, da sua esposa, tendo no playground as conversas que talvez não tivesse tendo há muito tempo. Escondido. Fugindo das suas responsabilidades para viver uma aventura igualzinha àquelas que ele nunca mais pôde ter. Talvez seja por isso que ele tenha decidido morar com a sua recente família em um prédio exatamente atrás da sua antiga faculdade. Talvez algumas coisas não tenham ficado para trás.
Eu tinha que conversar com ele, alguma coisa estava muito bagunçada em sua cabeça. Quem sabe a minha orientação sirva de alguma coisa. Sentei ao seu lado e comecei a contar o que pude perceber em uma caminhada até o elevador. Sobre ele, sobre o seu casamento, a sua filha, o seu presente e a sua amante. Mas, antes mesmo de concluir o meu raciocínio, sou interrompido por ele. Disse que não podia ouvir as minhas palavras. Ele estava no meio de um assunto muito importante com o chefe, não dava para conversar agora.
Eu estava exausto.