SQSW 306
Foi uma longa viagem. Camilo e sua família estavam se mudando de Salvador para Brasília em uma viagem de carro. Algo muito cansativo para quem não gosta de ficar olhando para campos e mais campos de soja. Seu pai fora chamado para um emprego e, por causa disso, a família teve que deixar tudo para trás rumo a Brasília. Não que Camilo tivesse muita coisa para deixar para trás, ele tinha apenas 7 anos na época. Adorava filmes e livros de espiões. Tinha uma saúde frágil, passou boa parte da infância usando nebulizador e fazendo incontáveis viagens ao hospital. Mas frágil talvez não seja a palavra ideal para descrever esse garoto franzino. Mesmo sendo alto, magro e quatro olhos, o conjunto perfeito para qualquer adepto das práticas de bullying, nunca foi alvo desses garotos; eles sempre iam atrás dos menores da classe. E Camilo detestava ver esses brutamontes agirem como os reis da escola, intimidando quem quer que fosse.
Depois de uma longa viagem de carro por uma estrada que mais parecia um ralador de queijo, finalmente chegaram ao seu novo lar na SQSW 306, um bairro localizado no lado Sudoeste de Brasília. Tudo naquela cidade era diferente, não existiam ladeiras e as ruas eram todas quadradas. Para começar, os prédios eram baixinhos, tinham no máximo 6 andares. Em compensação, como não podiam crescer para cima, cresciam para os lados. É como se os prédios de lá estivessem todos deitados um do lado do outro. Outra coisa curiosa é que os prédios de Brasília costumam não ter cercas em volta. Qualquer um pode passar livremente por baixo deles. Então, os gramados, parquinhos e campinhos de futebol eram compartilhados por todas as pessoas da quadra, gente de todos os prédios. E por quem não era da quadra também. Poder descer para o play e sair explorando as quadras de Brasília era libertador. Porém, mesmo com tanto espaço, Camilo ainda se sentia muito vazio ali. Não conhecia ninguém. Passava as tardes na janela olhando para aquele parquinho enferrujado em busca de outra criança para brincar. Até que encontrou. Foi em um desses dias em que estava parado olhando pela janela que viu um garoto da sua idade brincando no parquinho, sozinho, com uma espada do He-Man igualzinha à espada que tinha. Então, saiu correndo pela casa, colocou a roupa pra brincar, pegou a sua espada e foi em direção ao parquinho da quadra.
O nome do garoto era Henrique, eles tinham quase a mesma idade. Dali em diante, Camilo e Henrique seriam grandes amigos. Inseparáveis como Don Quixote e Sancho Pança. Camilo era o magricelo, Henrique, o gordinho. Saíam explorando as outras quadras juntos, descobrindo novos parquinhos e comendo bolo. Principalmente Henrique, ele adorava bolo. Mas só comia escondido do seu pai, que era personal trainer e fazia Henrique passar por dietas rigorosas para perder o peso que nunca o incomodou. Pelo menos não tanto quanto ficar sem poder comer bolo.
Um dia, saíram mais uma vez explorando, atravessando os prédios, entrando no meio dos matos, como nos filmes do Indiana Jones, em busca de qualquer coisa que fizesse aquela busca incessante valer a pena. E valeu. No cume de um pequeno morro de grama que separava dois prédios, os dois amigos avistaram um grupo de crianças. Todos fortemente armados com balonetes, arma feita de cano PVC e balão de aniversário que atira projéteis de feijão. Pareciam se divertir bastante atirando sementes uns nos outros. Camilo e Henrique ficaram ansiosos ao ver aquela cena. Dessa vez eles realmente tinham descoberto algo.
Era um grupo estranho de crianças esquisitas. Cada um deles tinha um apelido de animal e, aparentemente, o “Macaco” era o líder de todos eles. Suricato, Demônio da Tasmânia, Gambá, Tucano e Toupeira eram seus subordinados. Macaco era o rei da quadra 306, era quem escolhia os apelidos e as brincadeiras. Alguns tinham uma história por trás do apelido, outros só eram muito magros ou fedorentos. O Macaco, por exemplo, era baixinho e sabia subir em árvores melhor do que qualquer um; o tucano tinha um nariz grande e o suricato era um moleque magro e assustado. A ideia de entrar para o grupo e ganhar um apelido deixou Camilo e Henrique bem empolgados. Só o Macaco que não parecia estar muito contente. Para ele, o grupo não estava pronto para ter gente nova. Não era assim. Você não podia simplesmente cruzar o caminho deles e virar amigo de todo mundo apenas com a sua simpatia. Para fazer parte daquele grupo seleto de animais era preciso ser rápido, forte e inteligente. Camilo e Henrique teriam que se submeter a 3 provas. Só assim poderiam brincar com eles. Quem não passasse nos testes seria deixado para trás.
A primeira prova era de velocidade. As regras não estavam muito claras, mas quem cruzasse a linha de chegada primeiro estaria classificado. Camilo era muito mais rápido do que Henrique: em poucos metros de corrida Henrique já ficava vermelho e ofegante. Como não queria humilhar o seu amigo, correu mais devagar. O suficiente para parecer que Henrique corria tão rápido quanto ele. Depois de cruzar a linha de chegada, reconheceram a vitória de Camilo sem nem imaginar o fiasco que teria sido o desempenho de Henrique. A segunda prova era sobre força. Macaco disse que o desafio era subir na maior árvore da quadra, que não era lá muito alta. E nem tão desafiador. Ele só queria mandar nos dois meninos e mostrar para os animais um pouco da sua autoridade. Os dois subiram ali sem dificuldade. Já era o fim do dia quando foi dada a terceira prova. Macaco disse que para entrar no grupo os dois amigos precisavam fazer mais uma coisa: desvendar um enigma até o pôr do sol. Quem não conseguisse não faria parte do bando. Camilo já estava de saco cheio. Na sua cabeça aquilo era uma babaquice. Então Macaco disse:
— O que tem quatro pernas de manhã, duas ao meio dia e três à noite?
Essa era fácil. Camilo já tinha visto em um desenho. Não perdeu tempo para responder. Agora só faltava Henrique. Ele sim estava levando tempo. Enquanto isso, o sol que quase encostava com o horizonte deixava Henrique apavorado achando que não iria entrar para o grupo. Que ficaria sem um bando. Sozinho. Foi aí que Camilo perguntou para o Macaco quão rápido ele conseguia subir até o topo de uma árvore.
— Olha e quem sabe você aprenda — respondeu Macaco com deboche.
Começou a subir na árvore a toda velocidade. Enquanto os seus olhos se concentravam no próximo galho, Camilo se virava para contar a resposta ao Henrique.
— A resposta é “o homem”. O homem anda de 4 quando é bebê, depois fica adulto com duas pernas e depois tem três pernas quando fica velho de bengala.
Henrique abriu um sorriso exibindo todos os seus dentes de leite. Depois de se provar o mais rápido subidor de árvores, Macaco desceu de lá para escutar a resposta de Henrique. Agora sim os dois podiam fazer parte do grupo. A partir dali, Henrique passou a ser conhecido como Panda. E Camilo continuou sendo Camilo porque não iria permitir que ninguém o chamasse de Camelo. Apelido ridículo.
Ele e Macaco não se davam bem. Macaco gostava de comandar e Camilo detestava ser comandado. Por que era sempre o Macaco que decidia as brincadeiras? Por que era sempre o Macaco que decidia quais quadras explorar? E por que todo mundo sempre tinha que obedecer?
Depois de um tempo, Camilo pegou o jeito e estava ficando bom em confeccionar balonetes. Ele sempre encontrava os melhores canos para as suas arminhas de feijão. O seu segredo era revirar os entulhos que ficavam perto de alguma obra. Todo mundo do grupo queria um balonete feito por ele. Isso fez com que ele acabasse sendo mais respeitado ali. Mas Macaco o proibiu de continuar construindo balonetes. Disse que essa era uma função do Tasmânia, ele estava há mais tempo no grupo, sabia fazer um balote melhor do que qualquer um, enquanto os do Camilo eram de baixa qualidade, podiam colocar a segurança de quem usasse em risco. Pura babaquice, mas aceitou calado e ressentiu.
Pouco tempo depois, para o azar do Tasmânia e de todos os outros do grupo, ninguém mais estaria fazendo novos balonetes. A era de ouro dos canos PVC havia terminado. Não se encontrava mais o material em nenhum dos entulhos da quadra. Todo dia o grupo saía em busca de novos materiais e terminava o dia frustrado sem ter encontrado nenhum. Até que um dia, Henrique disse ter visto um grupo de moleques da quadra 305 roubando os entulhos deles de noite. Ao ouvir isso, Macaco perdeu a compostura. Ele sabia quem eram esses garotos. Faziam parte do grupo do Carioca, um garoto mais velho, que lutava muay thai e tinha duas namoradas. Era uma figura mitológica que todos temiam. Principalmente o Macaco. Carioca era o rei da quadra 305. A diferença é que lá na quadra dele ninguém tinha apelido de animal, mas todos podiam ser facilmente confundidos com bichos.
“Eles estavam roubando do nosso lixo, tirando os nossos canos PVC para confeccionar as suas próprias armas de feijão; não podemos deixar isso acontecer”, disse Camilo. Mas Macaco estava fraco e intimidado. Ele acreditava que, se houvesse um confronto entre as quadras, ninguém nunca mais conseguiria andar em paz por ali. O grupo estava com medo.
Macaco não sabia o que fazer, mas Camilo sabia. E também sabia que não dava para esperar ordens do Macaco, muito menos a sua aprovação. Até porque ele não suportava mais obedecer àquele cara. Camilo queria defender a sua nova casa, a sua quadra, mas não poderia fazer isso sozinho. Por isso fundou a Irmandade Secreta para proteger as terras da quadra 306. Só as crianças mais fortes e inteligentes poderiam se tornar espiões ali. E é claro que ninguém poderia ficar sabendo, muito menos o Macaco. Henrique foi o primeiro a ser convocado. Claro. Logo em seguida, o Tasmânia. Camilo o ensinou como fazia os seus famosos balonetes e o colocou como responsável pela confecção dos balonetes especiais, que só podiam ser usados por pessoas da Irmandade Secreta. Escondidos do resto grupo, em um terreno baldio, eles treinavam e brincavam juntos para proteger a 306 de uma possível invasão dos garotos da 305. Com o tempo, mais pessoas do grupo foram sendo convocadas para fazer parte. A maioria não tinha ideia da existência da irmandade. Muito menos que os seus amigos já faziam parte. Todos acabavam topando, empolgados. Era uma proposta irrecusável.
Os treinamentos secretos eram legais, as brincadeira também, todos tinham voz e espaço para sugerir novas brincadeiras e regras. Todo mundo estava bem feliz de estar na irmandade. O grupo inteiro já fazia parte, com exceção do Macaco. Tinha chegado a hora dele saber. Então um dia Camilo decidiu ir até a árvore em que o Macaco costumava ficar e subiu com ele para conversarem. Lá em cima, contou tudo para o Macaco, disse que havia criado a Irmandade Secreta para proteger a quadra dos moleques da 305; todo mundo já fazia parte, inclusive o Tasmânia, o seu braço direito. Só faltava ele. E ele estava convidado para participar, mas teria que fazer o treinamento assim como todo mundo. Ele ficou surpreso e fingiu não se interessar. Só que o seu olho não conseguia mentir, ele se sentia traído. Como ninguém tinha dado uma palavra? Como todos eles tinham sido tão fiéis ao Camilo e não a ele. Macaco não queria recusar a proposta, afinal, todos os seus amigos, ou subordinados, já faziam parte. Por outro lado, ele também não queria abrir mão do seu trono. Na cabeça dele, fazer parte da irmandade tornaria Camilo o seu líder, tirando dele todo o seu poder. Ele queria entrar, só não iria se submeter a ser comandado por alguém. Foi necessário que os dois chegassem a um acordo.
Macaco entrou para o grupo, agora era parte da irmandade. E, para isso, dividiu o poder sobre as terras da quadra 306 com o Camilo. Agora os dois eram líderes. Os dois mandavam juntos. No fim, isso só serviu para enfraquecer tanto o poder do Macaco como o de Camilo. Finalmente acabou. Ninguém mais mandava em ninguém. Todos tinham voz, eram uma verdadeira irmandade.
Camilo achava assim muito mais divertido. Só não mais divertido do que ter tramado com Henrique roubar todos os canos PVCs da quadra e culpar os valentões da 305.